«O nosso problema é que nos tornámos
todos emissores de verdades. A cacofonia atingiu coisas inaceitáveis, com uma
incapacidade absoluta de distinguir o essencial do acessório. E isso não é só
culpa dos meios de comunicação social. É culpa dos políticos. Eles são os
grandes emissores. Se tivessem capacidade de distinguir o essencial do
acessório não introduziriam tanto ruído, que depois é acompanhado pela
comunicação social.» “Sobre Portugal” -
Sobrinho Simões - entrevista em 2012
A ingenuidade, a aversão à dúvida, a temeridade no
contradizer, a preguiça na busca pessoal, a fixação nos aspectos acessórios ou
parciais, tudo isto e coisas semelhantes sempre impediram o enlace entre o entendimento
humano e a natureza das coisas e remeteram o primeiro para conceitos vãos alicerçados
em repetitivas e erráticas experiências ilusórias sobre a segunda.
Chegámos onde chegámos porque convertemos a opinião em
esclarecimento, e a natureza em mero objecto. Convertemos o mito (assim
qualifico a opinião irreflectida), em esclarecimento. E este esclarecimento
comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens, só os
conhece na medida em que pretende manipulá-los. A cultura contemporânea também
não ajuda, pois confere a tudo um ar de semelhança. A televisão, o cinema, os
jornais, constituem um sistema coerente de uniformização do Mundo.
Ora, a superioridade do Homem está no saber, porque o
saber possui valores que nem os mais poderosos podem deter em exclusivo ou sobre
as quais consigam impor a sua vontade. Mas para saber é necessário compreender,
entender as coisas. É esse entendimento das coisas o vencedor da superstição e
o percutor da libertação. O saber não conhece barreiras, nem sobre a
escravização do indivíduo nem na condescendência com os donos do mundo.
Uma das lições que o nazismo nos ensinou é a de como é
estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos bem fundamentados com
que os judeus negaram as hipóteses de Hitler chegar ao poder?! E os “inteligentes”,
que postularam a impossibilidade do Fascismo vingar no Ocidente, esses
inteligentes que sempre facilitaram as coisas aos bárbaros?! São, pois, os
juízos “bem informados e perspicazes”, geradores de prognósticos baseados em estatísticas
e na experiência (empirismo versus razão), e de declarações que frequentemente começam
com as palavras “ Ah… disso percebo eu, estou informado”, declarações de
convicção (testemunhos de fé), conclusivas e sólidas, são esses juízos que são
falsos. Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas existe um outro espírito
que é também anti-humano, e reconhece-se pela sua proclamada superioridade “bem
informada”. Estamos rodeados de tais espíritos.
A transformação da inteligência em estupidez é um fenómeno
recorrente na História. Ser razoável significa que é imperioso respeitar a
equivalência entre dar e tomar. Eis uma concepção da razão elaborada com base
na troca, o pilar mais importante do mundo hodierno. Nesta perspectiva os fins
só devem ser alcançados através da mediação, ou seja, através do mercado,
graças à vantagem que o poder alcança praticando a regra do jogo: concessões em
troca de concessões. Mas logo que o poder deixa de obedecer à regra do jogo e
salta para a apropriação imediata, a inteligência é ultrapassada, atropelada, e
em tal cenário o meio que sustenta a inteligência tradicional, a discussão,
desaparece. Eis porque o jogo foi instituído como mediação universal, uma
mediação que obriga as forças em confronto. No seu cerne, as relações entre
povos ou grupos distintos são relações de contingência: a contingência entre alguém
que detém algo que outrem necessita - assim o afirmava Agostinho da Silva. Mas
este modelo também acarreia a mais gritante injustiça social. Eis o paradoxo da
“estupidez da inteligência”.
Os homens são amistosos quando desejam alguma coisa
dos mais fortes, mas brutais quando o solicitante é mais fraco do que eles. Tal
é a chave para penetrar na essência do indivíduo em sociedade.
A conclusão de que o terror e a civilização são inseparáveis
- conclusão tirada pelos conservadores -, é fundamentada. O que poderia levar
os homens a desenvolver-se, de modo a tornarem-se capazes de elaborar
positivamente estímulos complicados, se não sua própria evolução permeada de
esforços e condicionada pela resistência externa? Primeiro, essa resistência
motivadora encarna no pai, depois numa multiplicidade de indivíduos: o
professor, o superior hierárquico, o cliente, o concorrente, os representantes
dos poderes sociais e estatais; e é a brutalidade da acção desses inúmeros
indivíduos sobre cada indivíduo que estimula a espontaneidade deste.
A possibilidade de temperar a intransigência, de
substituir por reclusão os castigos sangrentos através dos quais a humanidade
foi domada ao longo dos milénios, tudo isso parece um sonho. A coerção dissimulada
é impotente. Foi sob o signo do carrasco que se realizou a evolução da cultura;
negá-lo significa esbofetear a ciência e a lógica. Não se pode abolir o terror
e conservar a civilização; eliminar o primeiro implica a dissolução da segunda.
Os perigos residem nas extrapolações que daqui se podem construir: da adoração
da barbárie nazi à busca de refúgio nos círculos do inferno.
O destino dos escravos da antiguidade foi o destino de
todas as vítimas até aos modernos povos colonizados. A libertação do indivíduo
europeu realizou-se em ligação com uma transformação geral da cultura que
aprofundava cada vez mais a divisão à medida que diminuía a coerção física. O
corpo explorado devia representar para os inferiores o que é mau, e o espírito,
para o qual os outros (superiores) tinham o ócio necessário, devia representar
o supremo bem. Este processo possibilitou à Europa realizar as suas mais
sublimes criações culturais, mas o pressentimento do logro, que desde o início
se foi revelando, reforçava ao mesmo tempo essa obscena maldade que é o
amor-ódio pelo corpo, que permeia a mentalidade das massas ao longo dos séculos
e que encontrou na linguagem de Lutero a sua mais autêntica expressão. Na
relação do indivíduo com o corpo, o seu e o de outrem, a irracionalidade e a
injustiça da dominação reaparecem como crueldade, que está tão afastada de uma
relação compreensiva e de uma reflexão feliz, quanto a opressão em relação à
liberdade.
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