2013/11/24

Reflexões



«O nosso problema é que nos tornámos todos emissores de verdades. A cacofonia atingiu coisas inaceitáveis, com uma incapacidade absoluta de distinguir o essencial do acessório. E isso não é só culpa dos meios de comunicação social. É culpa dos políticos. Eles são os grandes emissores. Se tivessem capacidade de distinguir o essencial do acessório não introduziriam tanto ruído, que depois é acompanhado pela comunicação social.»  “Sobre Portugal” - Sobrinho Simões -  entrevista em 2012

A ingenuidade, a aversão à dúvida, a temeridade no contradizer, a preguiça na busca pessoal, a fixação nos aspectos acessórios ou parciais, tudo isto e coisas semelhantes sempre impediram o enlace entre o entendimento humano e a natureza das coisas e remeteram o primeiro para conceitos vãos alicerçados em repetitivas e erráticas experiências ilusórias sobre a segunda.

Chegámos onde chegámos porque convertemos a opinião em esclarecimento, e a natureza em mero objecto. Convertemos o mito (assim qualifico a opinião irreflectida), em esclarecimento. E este esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens, só os conhece na medida em que pretende manipulá-los. A cultura contemporânea também não ajuda, pois confere a tudo um ar de semelhança. A televisão, o cinema, os jornais, constituem um sistema coerente de uniformização do Mundo.

Ora, a superioridade do Homem está no saber, porque o saber possui valores que nem os mais poderosos podem deter em exclusivo ou sobre as quais consigam impor a sua vontade. Mas para saber é necessário compreender, entender as coisas. É esse entendimento das coisas o vencedor da superstição e o percutor da libertação. O saber não conhece barreiras, nem sobre a escravização do indivíduo nem na condescendência com os donos do mundo.

Uma das lições que o nazismo nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos bem fundamentados com que os judeus negaram as hipóteses de Hitler chegar ao poder?! E os “inteligentes”, que postularam a impossibilidade do Fascismo vingar no Ocidente, esses inteligentes que sempre facilitaram as coisas aos bárbaros?! São, pois, os juízos “bem informados e perspicazes”, geradores de prognósticos baseados em estatísticas e na experiência (empirismo versus razão), e de declarações que frequentemente começam com as palavras “ Ah… disso percebo eu, estou informado”, declarações de convicção (testemunhos de fé), conclusivas e sólidas, são esses juízos que são falsos. Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas existe um outro espírito que é também anti-humano, e reconhece-se pela sua proclamada superioridade “bem informada”. Estamos rodeados de tais espíritos.

A transformação da inteligência em estupidez é um fenómeno recorrente na História. Ser razoável significa que é imperioso respeitar a equivalência entre dar e tomar. Eis uma concepção da razão elaborada com base na troca, o pilar mais importante do mundo hodierno. Nesta perspectiva os fins só devem ser alcançados através da mediação, ou seja, através do mercado, graças à vantagem que o poder alcança praticando a regra do jogo: concessões em troca de concessões. Mas logo que o poder deixa de obedecer à regra do jogo e salta para a apropriação imediata, a inteligência é ultrapassada, atropelada, e em tal cenário o meio que sustenta a inteligência tradicional, a discussão, desaparece. Eis porque o jogo foi instituído como mediação universal, uma mediação que obriga as forças em confronto. No seu cerne, as relações entre povos ou grupos distintos são relações de contingência: a contingência entre alguém que detém algo que outrem necessita - assim o afirmava Agostinho da Silva. Mas este modelo também acarreia a mais gritante injustiça social. Eis o paradoxo da “estupidez da inteligência”.

Os homens são amistosos quando desejam alguma coisa dos mais fortes, mas brutais quando o solicitante é mais fraco do que eles. Tal é a chave para penetrar na essência do indivíduo em sociedade.

A conclusão de que o terror e a civilização são inseparáveis - conclusão tirada pelos conservadores -, é fundamentada. O que poderia levar os homens a desenvolver-se, de modo a tornarem-se capazes de elaborar positivamente estímulos complicados, se não sua própria evolução permeada de esforços e condicionada pela resistência externa? Primeiro, essa resistência motivadora encarna no pai, depois numa multiplicidade de indivíduos: o professor, o superior hierárquico, o cliente, o concorrente, os representantes dos poderes sociais e estatais; e é a brutalidade da acção desses inúmeros indivíduos sobre cada indivíduo que estimula a espontaneidade deste.

A possibilidade de temperar a intransigência, de substituir por reclusão os castigos sangrentos através dos quais a humanidade foi domada ao longo dos milénios, tudo isso parece um sonho. A coerção dissimulada é impotente. Foi sob o signo do carrasco que se realizou a evolução da cultura; negá-lo significa esbofetear a ciência e a lógica. Não se pode abolir o terror e conservar a civilização; eliminar o primeiro implica a dissolução da segunda. Os perigos residem nas extrapolações que daqui se podem construir: da adoração da barbárie nazi à busca de refúgio nos círculos do inferno.

O destino dos escravos da antiguidade foi o destino de todas as vítimas até aos modernos povos colonizados. A libertação do indivíduo europeu realizou-se em ligação com uma transformação geral da cultura que aprofundava cada vez mais a divisão à medida que diminuía a coerção física. O corpo explorado devia representar para os inferiores o que é mau, e o espírito, para o qual os outros (superiores) tinham o ócio necessário, devia representar o supremo bem. Este processo possibilitou à Europa realizar as suas mais sublimes criações culturais, mas o pressentimento do logro, que desde o início se foi revelando, reforçava ao mesmo tempo essa obscena maldade que é o amor-ódio pelo corpo, que permeia a mentalidade das massas ao longo dos séculos e que encontrou na linguagem de Lutero a sua mais autêntica expressão. Na relação do indivíduo com o corpo, o seu e o de outrem, a irracionalidade e a injustiça da dominação reaparecem como crueldade, que está tão afastada de uma relação compreensiva e de uma reflexão feliz, quanto a opressão em relação à liberdade.

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