2012/02/28

o ritual, portal do verbo?


As reflexões não terminaram na câmara de preparação pois a ela segue-se a prática da racionalidade que nos coloca em permanente reflexão sobre nós e sobre o Mundo.
Quero falar-vos de uma das razões que sempre me impediram de praticar um culto religioso estruturado, i. e. abraçar uma das muitas religiões que existem, ainda que, como ser espiritual que também sou, tenha, por vezes, sentido necessidade de procurar, praticar, e partilhar uma exteriorização dessa espiritualidade, que bem podia acontecer através de uma abordagem essencialmente religiosa. Essa razão impeditiva foi o ritual: conjunto de gestos, posturas corporais, ritmos, palavras e formalismos eminentemente simbólicos que, ao “sapiens vertiginosus”, homem submetido ao materialismo e dominado pelo imediatismo, parecem coisa ridícula, senão burlesca.

Paralelamente, considerava de forma idêntica o exercício da exteriorização, da partilha, dos meus pensamentos e sentimentos com outros. Assim me formata a vida hodierna e profana, irónica e retoricamente postulando: Que homens são estes - do início do século XXI em que os avanços da ciência e da técnica são a quase todos os níveis sensacionais e vertiginosos -, que se prendem a pieguices de auto-crítica e contrição pelos seus actos e omissões perante outros que, frequentemente, até são completos desconhecidos?! Ora, nessa lógica superficial do mundo pragmático de hoje, tais coisas são próprias de gente fraca, medíocre, gente vencida, derrotada, que não acompanhou a mudança dos tempos. Neste pensar achava, portanto, ridículos os rituais, como se se tratasse de aprender danças exóticas e complexas de alguma ilha situada nos antípodas da civilização. Como achava ridículos os discursos de compunção, de penitência, ou mesmo a apresentação das mais simples reflexões das coisas espirituais, perante um colectivo.

E assim, neste mundo em que a doxa (opinião) leva a dianteira à aletheia (verdade), a prática de tais rituais e tais exposições pessoais são desconsiderados e desprezados como coisa lamecha e anacrónica. De lado ficam o exercício da racionalidade – a consciência dos valores fundadores da civilização e do humanismo –, e o desdém pela prática dos rituais recebidos em herança, com consequente perda da identidade cultural, da identidade espiritual e da própria consciência crítica.

E isto é grave? É, sim. Porque, descuidados, veremos que a nossa condição de seres humanos continua tão ambivalente como no tempo em que habitávamos as cavernas. Ora, descubro que os rituais possuem outra dimensão para além dos atributos proclamados, descubro que potenciam a aceitação da exteriorização dos nossos sentimentos. São, a um tempo, mnemónicas que abrem as portas do pensamento e do verbo e, simultaneamente, elementos ordenadores e disciplinadores do corpo e do espírito.

Eventualmente, alguns de vós não compreendereis a surpresa que constituiu o resultado desta reflexão pois para aqueles que praticam rituais desde jovens isto não prefigura nenhuma descoberta relevante, mas para aqueles que apenas conheceram uma realidade materialista e afastada de qualquer exploração no domínio do espiritual, ou para aqueles, como eu, que dessas abordagens sempre desconfiaram, esta reflexão é significativa.

Talvez esta exposição vos pareça um tanto falha de conteúdo, mas entendam-na como uma das reflexões iniciais sobre a nova realidade que me é apresentada, sendo também consequência da vontade de praticar e partilhar essa exteriorização da espiritualidade que não logrei reconhecer no culto de qualquer religião, em resposta a esta convicção: cada ser humano é um enigma porque para lá da sua existência material ele encerra um eu inacessível ao conhecimento alheio e difícil à auto-consciência.

2012/02/22

dos portugueses


No que toca à força anímica, não obstante a realidade se apresentar mais complexa e menos estremada do que a fórmula que enuncio a seguir, os portugueses dividem-se, grosso modo, em miserabilistas e cultores da “nacional fanfarrice”, i. e., ora encontramos compatriotas descrentes dos feitos do passado e nas perspectivas do futuro, ora deparamos com acérrimos defensores da exaltação de uma nação prodigiosa à qual está reservada um destino grandioso e iniludível, um protagonismo exclusivo determinado pelo demiurgo - que encontra eco, p. ex., no mito do V Império, desígnio que se cumprirá um dia (?) Pessoalmente, julgo-me num quadro mais colorido do que este, redutor, que acabei de referir. Algures a meio caminho entre um extremo e o outro, podendo tal dever-se à descrença na prática actual de valores basilares da civilização como o exercício da Justiça e o apego à Verdade