DA BELEZA
A Beleza
nunca foi algo de absoluto e imutável, pelo contrário assumiu formas diferentes
segundo a cultura de cada período histórico e de cada região, quer na
apreciação do homem ou da mulher quer na dos objectos, dos animais e das
paisagens, ou mesmo a beleza das ideias e, até, da divindade.
Por vezes,
num mesmo tempo histórico a beleza é abordada de forma muito diferente
consoante é retratada pelos pintores e escultores ou pelos escritores. Basta
pensar como um ser alienígena interpretaria a noção de beleza feminina se
deparasse simultaneamente com uma pintura de Almada Negreiros e uma descrição
literária de Camilo Castelo Branco, ainda que estes autores não tenham
coexistido no tempo (Camilo morreu em 1890, Negreiros nasceu 3 anos depois).
Do Almada
refiro-me a uma daquelas mulheres matronas, cubistas e debruçadas sobre si,
contendo o mundo em si. Do Camilo, a pormenorizada descrição de uma Isaura que,
cito: «… não é alta. Pertence àquela
estatura que chamam mediana, a mais regular, a menos defeituosa, (…) [os
cabelos] Negros e luzentes, levemente ondeados, nus de enfeites e ataviados com
comodidade, e gentileza. Duas grandes tranças lhos dividiam, para se
entrançarem de novo, presas em duas grossas roscas por travessas. Quando as
soltava, as duas serpentes ondeavam-lhe por sobre as espáduas até à cinta. (…)
[as sobrancelhas] irrepreensivelmente curvas, dividem-se por uma incisão quase
imperceptível: longas, negras, e bastas. As pestanas, se ela descai as
pálpebras naquele pendor da meiguice natural, quase lhe quebram a luz dos
olhos, alindando-os, se é possível, ainda mais. (…) [os olhos] Meigos e
vertiginosos. Reflectem a luz frouxa das paixões suaves, e as labaredas
cintilantes das paixões escandecidas.».
Ora, na
sociedade ocidental é o ideal masculino que pontifica, um ideal preso ao
instinto sexual que explica e justifica o apreço pelos traseiros femininos proeminentes,
com reservas de gordura para a gestação, os quadris largos que facilitam o
parto, e os seios fartos para amamentar. E contra isto pouco pode a moda,
contra essa memória táctil dos homens que por muito que apreciem uma mulher
linda e magra jamais esquecerão a diferença entre estreitar nos seus braços uma
cintura feminina que deixa revelar os ossos ou uma cintura substancial, bem
mais voluptuosa.
As
sociedades modernas ocidentais estabelecem ainda uma relação entre beleza
física, inteligência e poder económico, ou seja, cultiva-se a crença de que uma
pessoa bonita tem mais capacidades e mais sucesso. Dos feios considera-se
sempre que são pobres, rudes, e falhos de êxito. Tal preconceito ainda amplia mais
as dificuldades de ascensão social dessas pessoas; o poeta Vinicius de Morais já
tinha escrito a respeito das mulheres: «as muito feias que me perdoem, mas
beleza é fundamental.».
As
preocupações com o Belo já vêm de longe. Platão terá sido um dos primeiros
pensadores a formular a pergunta “O que é o Belo?”, empreendendo uma resposta
ampla e cabal em que o Belo é identificado com o Bem, a Verdade e a Perfeição.
Assim, ao
conceito de beleza atribuiu uma natureza autónoma, separada do mundo sensível,
justificando que uma coisa é mais ou menos bela dependendo da sua inscrição/participação
na ideia suprema de beleza; e criticou a arte que se limitava a copiar a
natureza ignorando a beleza que o mundo das ideias contém. Mas se Platão ligou
a arte à beleza, Aristóteles separou-a, anunciando que a arte é uma criação
especificamente humana, e que o Belo não pode ser desligado do homem pois
existe neste intrinsecamente.
Na Idade
Média o cristianismo fundou um conceito de Beleza identificando-a com Deus, o
Bem e a Verdade. E por aqui se seguirá durante séculos, numa colagem excessiva
da ética à estética. Santo Agostinho acorrentou a beleza à harmonia, evocando o
concurso da unidade, do número, da igualdade, da proporção e da ordem; reiterando
que a beleza do mundo não é mais do que o reflexo da suprema beleza de Deus. Por
sua vez, São Tomás de Aquino ligou-a ao Bem e à observância de determinadas
condições fundamentais: Integridade ou Perfeição; Proporção ou Harmonia;
Claridade ou Luminosidade; uma vez mais identificando a beleza com Deus.
Entre os
séculos XVI e XVIII as academias impõem as estéticas aristotélicas e as suas
regras visando alcançar a perfeição na arte, ainda que na segunda metade do
séc. XVIII comecem a emergir ideias que proclamam a subjectividade do Belo. É o
tempo em que as sociedades europeias atravessam grandes convulsões, com o
início da revolução industrial e as importantes alterações políticas verificadas
na América e na França. Nesta conjuntura de efervescências novas ideias
despontam e a questão do Belo é equacionada como um problema de gosto.
E neste contexto surge Immanuel Kant, o criador do pensamento
que embasa a estética contemporânea. Para este filósofo do séc. XVIII os nossos
entendimentos estéticos têm fundamentos subjectivos dado que não se podem
apoiar em conceitos pré-determinados. E assim, o critério de beleza que neles
se exprime é o do simples prazer que nos acomete. A universalidade do Belo
passa a ser subjectiva, como subjectivo é o juízo do gosto.
«Continua a ser verdade que, ao
julgar belo um objecto, consideramos que o nosso juízo deve ter um valor
universal e que todos devem (ou deveriam) partilhar o nosso julgamento. Mas
como a universalidade do juízo do gosto não requer a existência de um conceito
a que e deva adequar, a universalidade do belo é subjectiva: é uma pretensão
legítima da parte de quem exprime o julgamento, mas não pode assumir de maneira
nenhuma o valor de universalidade cognoscitiva. “Sentir” com o intelecto que a
forma de um quadro de Watteau que representa uma cena galante é rectangular ou
“sentir” com a razão que cada gentil-homem tem o dever de oferecer ajuda a uma
mulher em dificuldade não é o mesmo que “sentir” que seja belo o quadro que
está a ser examinado: de facto, neste caso, tanto o intelecto como a razão
renunciam à supremacia que respectivamente exercem no campo cognoscitivo e no
moral, e metem-se em jogo livre com a faculdade imaginativa, segundo as regras
ditadas por esta última.» ECO, Umberto – História da Beleza (p. 264)
Embora se reconheça,
então, a incapacidade da Razão em impor os seus valores sobre esta matéria tão
subjectiva que é a definição do Belo, ela (a Razão) não está afastada da
discussão; mormente pela mão daquele eminente filósofo que consegue inscrever
parcialmente essa natureza vaga nas regras da Razão.
Ainda no
século XVIII ganham força as noções de génio, gosto, imaginação e sentimento e
assiste-se à construção do conceito Sublime. Uma vez que o Belo é uma expressão
da liberdade, sentimo-nos livres na beleza porque os instintos sensíveis estão
em harmonia com a lei da razão; já o sentimento de liberdade no sublime deriva
do facto dos instintos sensíveis não terem influência sobre as leis da razão,
porque aqui é o espírito que age autonomamente. Esta aparente contradição mais
não espelha do que o dualismo da natureza humana.
Em seguida,
os românticos exploram as dualidades, nomeadamente a anterior entre Belo e
Sublime, e levam mais longe essa constatação da natureza dual, da ocorrência
dos géneros, na nossa qualificação estética do mundo: beleza e melancolia;
coração e razão; reflexão e impulso coexistem, sendo essa coexistência encarada
como natural.
O Séc. XIX
trará consigo uma autêntica religião da beleza, emoldurada pela efémera época
de ouro do Ocidente: o período vitoriano em Inglaterra, o Segundo Império em
França, o pontificado das virtudes burguesas e o despontar do capitalismo.
Neste ambiente os artistas arriscam e avançam quebrando todas as normas,
procurando o inusitado, o excêntrico, o inalcançável, ofendidos e talvez
assustados pelas máquinas que oferecem a pura funcionalidade de novos materiais.
Em parte, como reacção a essa uniformização e democratização galopantes,
artistas como Courbet, Monet, Manet, Cézanne e outros rompem com os cânones e
as convenções do academismo, anunciando a eclosão da arte moderna.
E no século
XX sucedem-se as rupturas e explode uma multiplicidade de novas manifestações
criativas. Surgem as artes decorativas, a art
naif, a arte dos povos primitivos coevos, o artesanato rural; a Fotografia,
o Cinema, o Design, a Rádio, etc.
Por outro
lado, assiste-se a uma permanente insistência desconstrutivista em relação a
todas as categorias estéticas: os conceitos e as fronteiras entre as artes são contestados;
a arte é dessacralizada e perde a sua carga mítica e iniciática, tornando-se
frequentemente um simples produto de consumo.
Neste
ambiente, as estéticas normativas concebem uma beleza fundamentada em
princípios inalteráveis, como a estética fenomenológica de Husserl; as estéticas
marxistas e neomarxistas que vincam marcadamente a sua orientação sociológica; ou
a estética informativa que procura sistematizar a avaliação da componente
inovadora presente em cada obra de arte; mas é na estética das ciências que os
ideais de beleza alcançam um discurso tanto mais revelador quanto inesperado.
Raul Penaguião, um jovem matemático português, de 18 anos, dizia em 2012: «…a Matemática aplicada não me entusiasma
muito, entusiasma-me a beleza das ideias matemáticas, pelo que quero seguir
Matemática pura e investigação, e não tanto o
quanto se relaciona com a realidade, pois nesse relacionamento perde-se muito:
já dizia Albert Einstein, “Se as
leis da Matemática se referem à realidade, elas não estão correctas; e, se
estiverem correctas, não se referem à realidade”.»
Eis como
ideia do Belo se impõe de uma forma tão óbvia aos valores concretos da
realidade, reafirmando que a vida também encontra sentido numa componente subjectiva
que existe para além do universo material.
Nós, seres humanos,
temos necessidade de procurar ou criar a beleza, não só para recreação
intelectual mas sobretudo porque ela é um guia para a vida, mesmo que o seu
conceito dependa apenas de uma noção pessoal de harmonia.
H.
Fontes
consultadas:
- BOHM, Camila Camacho - UM
PESO, UMA MEDIDA - O padrão da beleza feminina apresentado por três revistas
brasileiras, Universidade Bandeirante de São Paulo
São Paulo, 2004
- ECO,
Umberto – História da Beleza, Ed. Difel, Lisboa 2005
- GUATIMOSIM,
Bárbara Maria Brandão - O BELO E O SUBLIME, Psicanálise &
Barroco em Revista v.6, n.3: 48-59, jul.2008
- LINO,
Alice de Carvalho - Considerações kantianas sobre os Gêneros -
PADÊ:estudos
em filosofia, raça, gênero e direitos humanos, UniCEUB, FACJS Vol.2,N.1/07. ISSN 1980-8887
- LINO, Alice de Carvalho – Belo e Sublime: A
Mulher e o Homem na Filosofia de Immanuel Kant – Universidade Federal de Ouro
Preto, 2008
- SATIE, Luis - Estética e ética em Kant - Escola Superior de Administração Fazendária,
Filosofia Unisinos, 2009
- VALENTE, Mariana – A Beleza das Ideias na
Educação Científica – Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência,
Departamento de Física, Universidade de Évora. Comunicação ao Seminário
transdisciplinar “Currículo, Didáctica e Formação de Professores”- Évora, Maio,
2014