OPINIÃO
Maçonaria e registo de
interesses
Por Francisco Teixeira
Professor do ensino secundário, Doutorado em Filosofia,
Maçon
Jornal Público de 05/01/2015
O antimaçonismo da deputada do PSD Teresa Leal
Coelho é, como todos os fundamentalismos antiliberais e antidemocráticos,
disforme e ignorante e faz parte de uma longa tradição antimaçónica.
“A positividade da exposição da nudez sem véus é
pornográfica”;
“O projeto heroico da transparência – de rasgar todos os
véus, de tudo expor à luz, de expulsar toda a obscuridade – conduz à
violência”.
Byung-Chul Han, A
Sociedade da Transparência
A Maçonaria é uma ordem
iniciática que visa o aperfeiçoamento da humanidade através da elevação moral e
espiritual do indivíduo. Na medida em que é iniciática a maçonaria propõe-se,
através do rito (articulação de gestos, movimentos, símbolos e invocações), a
transformação existencial do indivíduo, transubstanciando-o. Algumas vezes
consegue-o. Demasiadas vezes não.
Mas a “transubstanciação”
existencial não é o único fito maçónico. A maçonaria também visa aperfeiçoar a
Humanidade, porque o homem não é uma ilha e porque de pouco valeria salvar-se
um só se não se pudessem salvar todos os seres humanos. Neste sentido, a
maçonaria vive num duplo ethos ou
espaço de ação e inspiração: por um lado visa a transformação individual (e não
simplesmente psicológica), por outro visa a transformação social, porque o
corpo e alma não são coisas diferentes mas duas modulações, ou variações, da
mesma substância do humano. Mas, quer num caso quer noutro, o que se visa é uma
ambição soteriológica, i.e., salvífica, do eu individual, da experiência do que
é ser humano e da humanidade no seu conjunto. Mas a maçonaria não é uma Igreja
ou um partido. Não é uma Igreja porque não tem uma doutrina dogmática,
sacramentos ou um líder espiritual, e não é um partido porque não quer governar
nem tem um programa político, embora tenha e tematize princípios meta-políticos
de justiça e ética universais.
Por sua vez, a maçonaria usa o
rito como método de ação. Mas a ação ritual maçónica é secreta. No entanto,
este secretismo, “o segredo maçónico”, não constitui um instrumento de controlo
sociológico ou organizacional, externo ou interno, muito menos um segredo
material concreto. O segredo maçónico tem a ver com a natureza da própria
experiência ritual, que exige pudor face ao olhar do não iniciado e
concentração em si mesmo e na sua experiência ritual concreta, evitando, entre
outras coisas, o desejo pornográfico e totalitário de absoluta transparência.
Para a maçonaria o que é secreto é o que não pode ser reduzido a outra dimensão
ou dimensões que não a sua dimensão originária, no caso a dimensão ritual
simbólica. Ser secreto quer dizer, na experiência ritual maçónica, ser
irredutível a outra coisa, ser esotérico, i.e., ser interior, ter origem e
fazer caminho pelo lado de dentro da experiência humana. Por isso se diz que o
segredo maçónico é inviolável ou intransmissível: porque dizendo respeito à
experiencia particular de cada maçon não pode ser reduzido à linguagem usada
pela vulgar comunicação humana (ou a outras categorizações totalizadoras e
potencialmente totalitárias), não podendo, por natureza, ser violado.
Nada de especial, portanto. O
segredo maçónico é, pois, da mesma natureza que o amor ou amizade humanas (dois
irredutíveis fundamentais da experiência humana) e só constitui uma ameaça para
aqueles que acham que toda a realidade deve ser controlada, reduzida,
visibilizada e vigiada, incluindo a realidade mais íntima da experiência
religiosa transformativa. O segredo maçónico é, então, condição essencial de
liberdade, própria e alheia, já que se pressupõe que é num reduto último de
inviolabilidade pessoal que reside o sanctum
sanctorum da liberdade em geral. É por causa desta inviolabilidade que,
desde sempre, as tiranias perseguiram a maçonaria e os maçons e a experiência religiosa
e popular exotéricas (i.e., procedendo de uma origem ou audição externas)
sempre tiveram desconfiança da maçonaria e dos seus processos de recolhimento.
A maçonaria existe, pois, num ethos eminentemente religioso, porque
transformativo e soteriológico. Mas também existe e se firma num ethos político. Esta sua dupla dimensão
constitutiva tem a ver, por um lado, com a sua origem histórica, mas, também,
com a sua natureza ontológica, que recusa os dualismos cosmológico e
antropológico. A maçonaria vive, por isso, num mundo de fronteira entre este e
o outro mundo, entre o mundo celeste e o mundo terrestre, e é essa condição de
fronteira que, por um lado, faz dela uma coisa algo estranha e, ao mesmo tempo,
antiga, em que se valoriza a ideia e a prática do “estranhamento” cosmológico,
a mais lídima forma, ou experiência, da liberdade e da recusa de todo o
reducionismo.
Tudo isto a propósito de recentes
polémicas animadas, em particular, pela deputada do PSD Teresa Leal Coelho,
propondo que os deputados e os agentes políticos eleitos “sejam obrigados a
declarar publicamente se têm ou não filiações secretas”, mas tendo em vista,
declaradamente, as filiações maçónicas e do Opus Dei. Outras restrições aos
direitos fundamentais deste mesmo tipo já tinham sido introduzidas na Lei
Orgânica n.º 4/2014, de 13 de agosto - Lei-quadro do Sistema de Informações da
República Portuguesa, pela qual os funcionários dos serviços de informações da
República são obrigados a revelar todas as suas filiações societárias, em particular
a “Filiação, participação ou desempenho de quaisquer funções em quaisquer
entidades de natureza associativa”. Também aqui, e mais uma vez, o que se visa
são os maçons e a maçonaria.
No entanto, a Constituição da
República Portuguesa é clara (no seu artigo 41º, nº 3, “Liberdade de
consciência, religião e culto”) a referir que “Ninguém pode ser perguntado por
qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para
recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser
prejudicado por se recusar a responder”. Temos, então, que este artigo, e
aqueles intentos similares referidos acima, são claramente contrários à CRP,
porquanto o registo obrigatório de pertença à maçonaria, ou ao Opus Dei,
constitui uma pergunta e obrigações constringentes quanto a convicções ou
práticas religiosas.
Que esta discussão esteja a ter
lugar no parlamento da República Portuguesa, potenciada por uma deputada do
PSD, é absolutamente surpreendente e perigoso. Surpreendente e perigoso por
revelar profunda ignorância sobre a natureza da maçonaria e outras organizações
iniciáticas ou religiosas e, sobretudo, por revelar tentações totalitárias à
conta de uma ideia
desviante de transparência,
passando por cima de um princípio basilar das democracias constitucionais: o
princípio da absoluta liberdade de consciência e de religião, sem
constrangimentos diretos ou indiretos.
O antimaçonismo da deputada do
PSD Teresa Leal Coelho é, como todos os fundamentalismos antiliberais e
antidemocráticos, disforme e ignorante e faz parte de uma longa tradição
antimaçónica (tão longa quanto a própria maçonaria). Quanto a isso, nada de
novo. Já o silêncio de outras pessoas e instituições, mais cultas e mais
responsáveis, auguram o pior para a liberdade dos portugueses. Pelo seu lado, a
maçonaria continuará o seu caminho como via iniciática e espiritual não
dogmática, visando a liberdade e a igualdade acima de todas as coisas, com os
olhos postos na utopia antiga de uma fraternidade universal de homens livres e
de bons costumes.